30 de março de 2010

Duarte é o primeiro a descer do camião. Os seus companheiros seguem-no. Aterram todos inevitavelmente em cima da lama que as chuvas torrenciais tinham tão inconvenientemente criado. As botas que lhes tinham dado não eram de qualidade suficiente para impedir que a humidade e a terra se infiltrassem para os pés dos homens. Pior eram os outros que já tinham visto que andavam com sapatos normais do seu passado dia-a-dia. O dia estava cinzento, as nuvens choravam como que um presságio para o que aí vinha. As árvores, muitas já carbonizadas, completavam o cenário de destruição a que os recrutas chegavam.

Os edíficios do local onde haviam chegado encontravam-se quase todos em ruínas. Dois soldados tentavam heroicamente remover dos escombros de uma mercearia alguém que lhes gritava por ajuda. Um removia pedras e o outro afastava-as. Mais soldados acudiam à situação, esperando talvez que fosse mais um combatente das milícias que pudesse fornecer informação sobre potenciais locais estratégicos. Num jardim ali ao pé conseguia-se observar um cão que estoicamente guardava o corpo dilacerado do dono que jazia ao seu lado. Ninguém se atrevia a aproximar, pois o cão parecia mais que capaz de provocar danos a qualquer humano. Uma idosa chorava e berrava no degrau que dava para a porta da sua despedaçada casa. Soldados corriam de um lado para o outro, num formigueiro constante, a cumprir ordens vociferadas pelos seus superiores, que à pressa queriam montar a defesa da aldeia.

Foi neste cenário que o esquadrão, como assim lhe chamaram, de Duarte chegou. Após terem todos descido do camião, este arrancou e, presumivelmente, foi cumprir outras ordens. Um sargento aproxima-se:

"Em sentido!"

Os magalas, ainda confusos, tentaram, o melhor possível, organizarem-se em duas filas de 5 homens cada. Chocavam uns com os outros aleatoriamente, um deles inclusivé caiu de focinho na lama, e para tentar manter a dignidade, levantou-se e pôs-se em sentido como ordenado, apesar de ainda haverem pedaços de terra a escorrerem-lhe face abaixo.

"Mas que merda é esta!? Vocês nem sabem manter-se em linha recta!? Mas quanto tempo é que vocês treinaram, meus cabrões!?"

Todos sabiam a resposta, mas nenhum quis responder. A convocatória tinha sido feita há oito dias atrás, e quem não fosse voluntariamente seria arrastado das suas casas. "Vão defender a vossa pátria! Tenham orgulho nisso e não faltem ao vosso dever como portugueses!", disseram eles repetidamente. Para Duarte foram precisos dois soldados para o arrastarem, chegando ao ponto de terem de o pôr inconsciente para ele se calar durante a viagem. O primeiro dia tinha sido para lavagem cerebral, para convencer os menos colaboradores que era preciso lutar para manter a liberdade. Nesse mesmo dia foi a primeira vez que teve uma arma nas mãos. A semana foi intensa, focada em instruir os recrutas a disparar a carabina, limpá-la, carregá-la e repará-la, caso encravasse. As tácticas militares e o exercício físico não tiveram muito investimento. O que os senhores da guerra queriam eram mais homens com capacidade para dispararem. O quanto eles corriam já era com cada um. Quando finalmente Duarte estava a conhecer melhor os seus companheiros, eles são todos separados e formados em esquadrões com todos os membros de cidades distintas, para evitar deserções ou rebeldias entre os soldados. Hoje, Duarte conheceu os 9 homens com que possivelmente iria morrer no campo de batalha. Por incrível que pareça, pouco falaram uns com os outros na viagem de 3 horas que tiveram dentro do camião. Sabiam os nomes de cada um e pouco mais.

O sargento ficou mais calmo repentinamente.

"Pois, já sei. Devem ter sido recrutados" - disse, fazendo uma careta sarcástica - "há uma ou duas semanas. Esses cabrões das camadas superiores pensam que é suficiente dar uma G3 a um palerma que faz dele um Rambo." -Fez uma pausa breve e riu-se. -"Vou ser honesto convosco, já tive uns cinco ou seis esquadrões exactamente como vocês, com os quais lutei, tal e qual como vou lutar convosco, e eu fui sempre o único sobrevivente. Vocês não sabem pensar e por isso deixam-se matar. E depois eu é que me fodo, que fico lá sozinho a desenrascar-me!" Fez outra pausa e assumiu uma expressão mais séria e formal, como se fosse fazer uma apresentação. "Eu sou o sargento Sebastião Oliveira, mas como são meus amigos, podem-me tratar por Sargento. Eu vou lutar ao vosso lado hoje e na inteira duração das vossas vidas enquanto soldados do glorioso exército português..." - Duarte reparou que ele parecia emocionado ao dizer aquilo.- "Cumpram as minhas ordens à risca e talvez tenham possibilidade de sobreviver mais uns dias. Eis a situação: o inimigo está a avançar rapidamente pelas nossas linhas no Norte. No total, um exército ainda numeroso, segundo dizem. Pela aproximação à auto estrada, esta aldeia onde nos situamos é um excelente ponto estratégico, pois eles não podem passar veículos livremente enquanto andarmos por aqui. Escusado será dizer que tanto para nós como para eles a estrada é importantíssima. Daí eles irem atacar pelo Norte para tentarem minimizar os estragos. A Capitã Moura, encarregue das nossas operações aqui, tem tentado arranjar o máximo de pessoal para atrasarmos os invasores enquanto se forma uma defesa mais sólida no Sul. Como tal, já me foram dadas as ordens de posicionamento e iremos o mais depressa para lá. O inimigo está a 20 kilómetros daqui pelos vistos..."

O Sargento interrompeu o discurso quando reparou nas caras de terror súbito dos seus soldados. Apesar disso, começou a correr em direcção a um pequeno bosque. O esquadrão, desprevenido, agarrou nas carabinas e reticentemente acelerou para tentar apanhar o Sargento.

Duas horas depois ouviam-se já explosões a aproximar-se. Os dez soldados tiveram tempo, no entanto, de cavar uma espécie de trincheira, sob a supervisão do Sargento Oliveira. Tinham tido sorte, pois o Sargento tinha conseguido uma metralhadora ligeira montada e cerca de 300 cartuchos do seu calibre. Esperava-se uma grande quantidade de infantaria, por isso iria dar jeito. A Duarte, não por ser mais corpulento, mas por ter mais força (através de um critério do Sargento), foi incumbida a função de disparar e manipular a metralhadora. Um dos companheiros iria recarregá-la quando preciso.

A trincheira estava disposta em meia lua, de maneira a que se pudesse cobrir o máximo de área. Um pequeno bosque de pinheiros protegia a retaguarda e daria possibilidade de retirada facilitada, caso necessário. Todas as outras trincheiras tinham aspecto semelhante, dispostas a uma distância média de 200 metros umas das outras. Os homens espalhavam-se o melhor possível, e foram instruídos para se agruparem em grupos de 2. Em cada par, só um disparava de cada vez, para poupar munições. Se as informações estavam correctas, estariam à espera de uma grande quantidade de tropas inimigas, daí ser crítico poupar. O Sargento diria quem lançaria as granadas de mão e para que sítio, para tentar controlar algum foco maior de presença inimiga.

As primeiras barragens de morteiros começaram. Os soldados não tinham sangue, tinham apenas uma combinação horrível de medo e adrenalina nas veias. "Não tenham medo de matá-los! Eles não vos vão poupar! Mandem-nos pá puta que os pariu!". Eles não ouviram muito bem. Não por causa do barulho infernal das explosões, mas porque se aperceberam que estavam nos seus baptismos de fogo. A sensação de estar na euforia máxima da guerra. Daí a nada viria o inimigo.

E eles teriam de matar pela primeira vez.



A barragem terminou.

"Preparem-se! Tu, Duarte, né!? Dispara só quando eu disser!! Não antes!"

No fundo, vultos começaram cuidadosamente a avançar pelas terras lamacentas. Avançavam como se não soubessem que estava ali a guarnição Portuguesa em força.

"Sargento, eles não sabem que estamos aqui!?"

"Possivelmente não, se eles se aproximarem mais uns 100 metros sem se protegerem sequer é porque não sabem. E aí só disparamos quando eles estiverem bem perto. Mas acho pouco provável, porque senão não viriam a pé..."

"A linha de homens estende-se pelo horizonte! Mas afinal quantos são!?"

"Cala-te, queres que eles te ouçam!?"

Continuaram a avançar como se não esperassem resistência. Os portugueses já conseguiam ter um inimigo na mira de tão perto que estavam. Hesitavam em disparar, apesar de terem um tiro certo. Não queriam revelar a emboscada e potencialmente estragar a estratégia Portuguesa.

"Duarte, não dispares mesmo quando disserem fogo. Há algo estranho aqui. Dispara só com a carabina. Poupem munições, começo a pensar que querem testar as nossas defesas."

"FOGO!"

O grito de guerra soou como um relâmpago. As tropas inimigas, apanhadas de surpresa, foram despedaçadas pelos primeiros tiros e imediatamente o esquadrão de Duarte também começou a disparar. Duarte atingiu um soldado na anca, e para se certificar, apontou à cabeça. Hesitou durante longos segundos e finalmente disparou.

CRACK!

A sua primeira morte. O mundo parecia que tinha parado. Não sabia como se sentir. Ficou quieto, hirto, sem reacção nenhuma. Uma bofetada acordou-o.

"Cabrão! Acorda pá! O primeiro é o que custa mais, agora é sempre a aviar!"

Estranhamente, a banalidade com que o Sargento lhe disse isto fê-lo despertar e não se importou tanto com o que sabia que estaria prestes a fazer. Posicionou-se na metralhadora e os portugueses, apesar de ainda se ouvirem uns tiros aos longe, esperaram pela segunda vaga.

Os morteiros começaram o seu vómito mortal outra vez, desta vez, muito mais mortífero do que o primero. Um morteiro explodiu na trincheira ao lado direio da de Duarte, que também tinha uma metralhadora e foi, por isso, marcada como alvo a eliminar pelos morteiros.

"Porra, eu sabia que estavam a testar as defesas! Só com esta brincadeira devem ter destruído uns 4 ou 5 ninhos..." - o Sargento parecia mais estar a falar sozinho.

A barragem terminou.

"Duarte, dispara para onde vires um maior aglomerado de homens! E poupa munições por amor de Deus!"

A segunda vaga apareceu ao longe, desta vez muito mais cuidadosa. Prosseguia lentamente pelo terreno, escondendo-se atrás do que pudesse. Tiros começaram a ser disparados no lado esquerdo, seguindo-se pelo lado direito. Aparentemente estavam a demorar mais tempo a chegar à linha de visão dos portugueses do centro o que nos flancos.

Finalmente o inimigo começou a disparar e os portugueses retribuiram. Duarte esperou por uma boa oportunidade. Viu cerca de oito homens a saltar um muro. Decidiu disparar umas rajadas para lá. Os soldados tombavam como peças de dominó. Observou uma carga de uns 20 homens no flanco direito, em direcção ao ninho destruído anteriormente. Sabendo que não os podia deixar passar impunes, direccionou o fogo para lá.

O campo de batalha ficou repentinamente coberto de fumo.

"Grande merda, eles lançaram granadas de fumo... Preparem-se, eles agora vão aparecer mais perto! Duarte, manda umas rajadas de vez em quando para eles não se armarem em espertalhões!"

Disparou uma vez, sem efeito visível. Disparou uma segunda e uma terceira. Frustrado, disparou uma rajada mais longa e aí notou gritos de dor. Eles já estavam muito perto.

"Depressa, recarrega a arma, vou precisar de muitos tiros agora."

O companheiro obedeceu rapidamente. Quando pronto, Duarte teve o instinto de disparar contra o fumo, que se começava lentamente a dissipar agora. Ouvia corpos a cair redondos pelo chão. Parou e ficou à escuta.



Do meio do silêncio e de dentro do fumo saiem as tropas inimigas a disparar loucamente. Estavam a uns meros 50 metros da trincheira. Os portugueses fazem o melhor que sabem para os manter longe. É nesta altura que a metralhadora fica sem munições. Duarte troca rapidamente para a carabina e ajuda os companheiros a repelir o ataque. Quando precisa de trocar de carregador, instrui o seu par para começar a disparar, como planeado. Aí verifica que estava morto já. Friamente pega na carabina ainda carregada do cadáver e recomeça a disparar. Quando teve de recarregar outra vez, aproveitou para contar os que ainda estão na trincheira vivos.

Cinco.

Assustou-se, não se tinha apercebido do caos à sua volta. O Sargento berra a ordem para se juntarem mais.Duarte afasta os corpos dos falecidos para possibilitar a manobra.


Meia hora passa. Os últimos cinco daquela trincheira haviam aguentado a segunda vaga naquela zona.

"É assim rapazes, de certeza que os cabrões já passaram a nossa linha em vários pontos, será uma questão de tempo até nos rodearem. Quando vier a próxima vaga, ou se nos atacarem pelo flanco disparamos uns tirinhos e damos corda aos sapatos. O bosque vai-nos ajudar com a retirada. Já agora, estou orgulhoso de vocês, portaram-se extremamente bem!" - disse isto com um enorme sorriso paternal.

Ouviram-se tiros à esquerda. O inimigo aproximava-se pelo flanco.

"Ok, disparem uns tiros para cobrir a retirada, lancem as granadas que têm, causem o máximo possível de dano."

Mais vultos apareceram finalmente à esquerda e os que restavam do esquadrão, obedientes que eram, à medida que iam lançando as últimas granadas, fugiam para o bosque. No final só ficaram lá o Sargento e Duarte.

"Vá Sargento, ainda tenho de mandar as minhas, já vos apanho."

"Ok, tu lá sabes, boa sorte! Estou ali à tua espera."

O Sargento escapuliu-se entre as árvores, e Duarte lançou as granadas que tinha. No entanto, um soldado inimigo desarmado tinha-se arrastado pelo campo de batalha, apanha-o de surpresa e consegue mandá-lo ao chão. Duarte solta-se e agarra na sua pistola, executando o soldado imediatamente, ficando coberto de sangue. Os outros soldados inimigos aperceberam-se que Duarte estava sozinho. Duarte não conseguiria fugir sem ser alvejado. Escondeu-se atrás da trincheira e agarrou em todas as carabinas que ali estavam abandonadas. Disparou o máximo possível a tentar ganhar tempo, talvez conseguisse fugir ainda. Mas não. Não era possível. Eram demasiados, e já só tinha um carregador. Estava acabado.

Pegou na pistola e olhou-a longamente. Conseguia ouvir os soldados a ladrarem uns para os outros, a aproximarem-se. Colocou a boca da pistola junto ao crânio. Fechou os olhos e começou a premir o gatilho.

CRACK!
CRACK!
CRACK!

Reabriu os olhos, surpreso. Não estava definitivamente morto. Olhou em redor, cuidadosamente. Os soldados inimigos tinham sido ceifados. Do bosque saíram os seus 4 companheiros.

"Então cabrão!? Não disseste que vinhas!?" - disse o Sargento rindo.

"Porque é que voltaram!? Já podiam estar safos!"

O sargento suspirou. Depois, disse:

"Nós lutámos juntos, matámos dezenas de cabrões, não deixámos que tomassem um centímetro de terra impunentemente. Vimos os nossos morrer. Nós não morremos por causas nem por nações. No fundo, morremos e vivemos uns pelos outros. Um soldado não é nada sem um irmão ao lado. Por isso, teremos para sempre uma relação especial. Por isso, seremos para sempre irmãos de armas. Por isso, voltámos para trás. Não abandonamos um irmão."

Duarte não disse nada. Sabia que os reforços inimigos não tardariam. Pegaram no que puderam e correram para o bosque. A barragem de morteiros começou outra vez. Duarte ia em último na fila composta pelo seu esquadrão que progredia pelo bosque. Um morteiro caiu atrás dele e matou-o.

2 comentários:

  1. Porreiro pá! Um estória bem escrita com um unhappy end. Muito bom,mesmo!

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  2. Grande história, grande lição final. Podias era ter poupado a personagem principal. Mas eu compreendo ao mesmo tempo.

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