Saltitando cada par de degraus na estação de comboios, Jansénio resurge à superficie da estação de Roma-Areeiro. Por mera coincidência, parece sempre levar com o mesmo raio de Sol todos os dias ao escalar o último degrau. Coincidência de facto, pois o raio de Sol não se mantém sempre naquela posição a todas as horas do dia, como se sabe.
Do outro lado da linha de comboio uma senhora canta num volume extraordinariamente elevado. Subitamente começa um discurso sobre o Armagedão. Como está próximo e todos os pecadores irão arder nos mais quentes fogos do Inferno. Vestida com cores algo apropriadas para a ocasião: uma mistura de vermelho, verde, branco e preto... As cores das montadas dos cavaleiros do Apocalipse.
"Engraçado.... Deveras engraçado." - pensou Jansénio, sorrindo - "O pormenor das cores está verdadeiramente engraçado. O fim do mundo está próximo? Que sera sera, como dizia o outro."
Pegou no seu crucifixo de oiro e olhou fixamente para ele e de seguida para a senhora (que neste momento mencionava as desvantagens absolutamente horríveis de termos cometido prazeres carnais quando for a hora do nosso julgamento).
"Não é isto que o Patrão quer, de certeza. Acho que isto nem chega ao fanatismo. Insanidade talvez? Não interessa no fundo... Ora vejamos, falta muito para o comboio?"
Verificando o relógio calculou que deveria conseguir ver o comboio a aproximar-se, se se voltasse para trás. De facto, lá vinha ele. Jansénio marchou um bocado mais para a frente, onde se situava uma posição menos frequentada do comboio pelos clientes dos caminhos de ferro. No entanto, um indivíduo peculiar chamou-lhe a atenção.
Escrevinhava curvado num bloco; o cabelo, muito longo, a esvoaçar ao sabor do vento. Encostado a uma coluna parecia também estar à espera do comboio. Apesar de nem sequer verificar se efectivamente o comboio vinha (facto já confirmado por Jansénio), começou a arrumar os seus pertences. De repente, lança olhares para toda a estação. O seu olhar prende-se no de Jansénio por apenas umas décimas de segundo (apesar de parecer muito mais tempo) e vai mudando rapidamente de alvo. Curiosamente, parecia ter ignorado de todo a senhora profeta do outro lado da linha, porque apesar de observá-la momentaneamente, não demorou muito a continuar a vistoria da estação.
Jansénio achara aquela uma personagem curiosa, mas limitou-se a passar à frente dele, reparando ainda no crucifixo de prata que tinha dançado para fora da camisola. Parou uns metros adiante. Nisto, e ainda antes do comboio definitivamente parar, reparou num jovem casal de namorados a tornarem públicas as suas manifestações de amor de um com o outro, uma carícia aqui, um beijo ali, um beliscão e uma bofetada leve consequente, em tom de brincadeira.
Jansénio entrou no comboio, e apesar de estar vazio, deixou-se ficar de pé. O outro indivíduo rapidamente se sentou. Mas não deu importância. O seu pensamento estava agora ocupado com um outro assunto, mui delicado para ele.
O amor.
"Lá vais tu outra vez Jansénio... Sempre a bater na mesma tecla... Não queres ter esta discussão outra vez, pois não? Já sabes que não foste feito para amar outros humanos. Já tentaste! Achaste impossível existir amor nos humanos! Se todos conseguiam porque é que tu não havias de poder!? Porque não és desses homens todos sensiveis (e obviamente desonestos) para com as suas "almas-gémeas"... Ha! Infelizmente a honestidade não tem lugar no amor, e por isso tu também não tens, pois segues (e muito bem!) os príncipios religiosos a que voluntariamente te submetes!"
"Sim, talvez, mas acho deveras estranho que eu consiga tão perfeitamente mostrar amizade e sacrifício por um colega, mas nunca o mesmo por uma possível cara metade. Como é que pode não existir amor nos humanos se afinal eu sou o produto dele? Como pode não existir se eu vejo tantos a arranjarem namoradas e serem felizes, mesmo que seja superficialmente? É tudo produto das reacções químicas das hormonas? Não será bom às vezes fazer coisas em que não acreditamos e que nos prejudicam imensamente por amor?"
Primeira paragem de comboio. Na outra porta, ao mesmo tempo que uma enchente de pessoas, entra uma mulher acompanhada do filho pequeno e sentam-se ao pé do outro rapaz (sim, era definitivamente um jovem). A mulher com o menino captou a atenção de Jansénio pois ele era bastante vibrante e ruidoso, o que acabava por irritar qualquer santo.
"Tu és esperto demais para sentires amor! Até parece que não te lembras da Gambina?"
Jansénio suspirou quase melancolicamente. - "Sim, lembro-me perfeitamente. Como me poderia esquecer? Uma rapariga que poucos deixariam escapar como eu deixei. Como pude ter sido tão estúpido e insensível!?"
"Deixa-te disso homem! Sabes que amar não é para ti. Ao menos foste honesto o suficiente para lhe dizer isso por muito que te custasse a ti...."
"E a ela..."
"Já te disse para não te responsabilizares por aquilo não ter resultado. Acontece! Aposto que a Gambina já deve ter arranjado outro potencial namorado. Sim, porque nunca chegaste a ser namorado dela oficialmente!"
"Sim, suponho que sim. O amor é uma daquelas coisas que eu simplesmente nunca consegui perceber. É isso e principalmente aplicado a mulheres, criaturas tão esquisitas! Em termos de amor claro!"
"Claro..."
"É como os americanos dizem: não se pode viver com elas e não se pode viver sem elas."
Despertando de novo para a realidade. Reparou que o menino tinha sossegado bastante. Parecia mesmo aleijado, pois estava quase a chorar.
"Deve ter caído. Foi remédio santo! Já estava a chatear toda a gente."
O jovem de antes levanta-se. É interpelado por uma idosa, que pelos vistos estava a ralhar com ele.
"Essa agora, que será que ele fez para enfurecer a senhora? Ou é outra daquelas do Apocalipse? Não, estão mais pessoas a olhar com um olhar desaprovador para o rapaz; foi algo que ele fez. Bom, seja como for, ele saiu do comboio. Ah!" - exclamou, em pânico - "É a minha estação!"
Explodindo da sua posição, ainda conseguiu comprimir-se o suficiente para sair do comboio antes de ser esmagado pelas portas. Olhando para os lados, à procura do rapaz, só conseguia notar o grande rebuliço do caos à sua volta: jovens rindo, pessoas a falar ao telémovel, senhoras rebolando. O normal enfim. O rapaz tinha algo que lhe chamava a atenção, mas ele não sabe exactamente o quê. Teria que descobrir noutra oportunidade. Jansénio, quando chegasse a casa, iria finalmente almoçar:
"Tenho fome..."- pensou.
Esta tentati~va de entroncar duas personagens já conhecidas, parece ter resultado muitíssimo bem. Parabéns. Temos escritor.
ResponderEliminarO Jansénio vive um dilema atribulado. Por um lado quer amar e ser amado como qualquer um, mas por outro não confia no próximo, achando que este existe apenas para o colocar à prova. Tal como o Jansénio há por esse mundo fora muita gentinha que vive este dilema. E por isso vai adiando uma relação até que...
ResponderEliminaro tempo (esse inexorável varredor de dias) termina e não deixa campo de manobra. Depois é tarde demais e acordam sós a olhar o passado e a perceber quantas oportunidades deixaram passar ao lado sem que tivessem coragem para as agarrar. Depois é tarde demais!