Jeremias desce calmamente do comboio. Serpenteando pelas multidões consegue esquivar-se da confusão da estação de comboios.
E começa a subir a sua rua.
Não se pode dizer que dê muito nas vistas. É um rapaz na casa dos vinte, altura média, barba por fazer. Tem um aspecto enfezado, franzino, e um andar ligeiramente curvado, apesar de não carregar nenhum peso significante na mochila. De facto, a sua maneira peculiar de locomoção leva a inferir que está deprimido. Não o está. Não nesta altura.
Jeremias enfrenta a primeira passadeira no seu trajecto até casa. Aí, uma figura familiar vem cumprimentá-lo. Nunca lhe soube o nome, mas não precisava de saber. Pondo-se de cócoras, faz uma festa terna na cabeça do cão. Sempre o conheceu abandonado e via muitas vezes as pessoas a enxotá-lo. Todavia, tudo o que parecia precisar para viver mais um dia era realmente aquela festa diária por um humano que não o tratava como os outros.
Coçando-lhe a orelha, Jeremias aconselhou o cão a seguir caminho e, levantando-se, ele próprio continuou para o seu objectivo.
Lembrava-se da altura em que era feliz, alegre e ingénuo. Quando era criança. Todos se aceitavam pelo que eram. Ridicularizavam-se uns num dia, para no dia a seguir serem os outros as vítimas. E riam-se todos com uma amizade escondida que nunca ninguém queria admitir.
Mas que todos sabiam ser verdade.
Desviando-se de um grupo de jovens a descer a rua, Jeremias prossegue a sua caminhada rua acima. Estando quase constantemente a olhar para o chão, consegue evitar esmagar insectos ou outros animais pequenos com a sorte infeliz de estarem no sítio errado. Às vezes, o cruxifixo de ouro dançava para fora da camisola num solavanco ou noutro, lembrando-o que todos têm direito à vida, mesmo que não o saibam.
Reflectia como a religião o tinha ajudado tanto nos anos que se seguiriam ao ensino básico. Pensava que uma escola nova significaria novas potencialidades de interacção com outros. "Pessoal novo para conhecer e criar laços com." Lembrava-se de ter dito isso. A vida foi cruel ao ensinar-lhe o quão errado estava.
Depois de passar à porta do antigo barbeiro, aproximou-se da mercearia local, onde um outro belo amigo o esperava. Um cão gordo, preto com uma mancha branca no pescoço, arraçado de pastor-belga. Para este, sendo mais preguiçoso, Jeremias teve de se lhe dirigir pessoalmente e fazer-lhe uma festa na cabeça, coçando-lhe a orelha depois.
Tinha crescido numa escola diferente, por isso ficou admirado ao chegar ao secundário e não ver algumas das coisas que achava universais. A amizade, o amor, o respeito e tantos outros sentimentos pareciam-lhe superficiais ali.
Teria estado cego este tempo todo? Era esta a sociedade que realmente vivia? Uma sociedade onde o visual era mais importante que as pessoas em si?
Não o queria acreditar, por isso continuou a comportar-se como sempre fez. Inevitavelmente, as humilhações começaram e tornaram-se mais sérias ao longo dos anos. Jeremias não era giro, não era popular nem era sociável. Pudera! Por muito que tentasse, não conseguia parar as humilhações nem conseguia criar os laços que tão desesperadamente queria. No undo, pensava apenas que era incompreendido. A sua ingenuidade de criança desapareceria rapidamente.
Não conseguia encontrar uma resposta na sociedade que explicasse o comportamento dos outros. Questionava-se constantemente de quem seria a culpa? Seria verdadeiramente ele que era diferente? Uma aberração no meio dos normais? Começou a mentalizar-se que era verdade. Que nunca seria tão bom como qualquer um deles. Parou de se esforçar para tentar ser aceite. Sabia que já não valeria a pena. Todos os dias era humilhado constantemente, tanto dentro como fora da sala de aula. E seria assim até ao fim do secundário.
Infelizmente, não podia contra-atacar as humilhações. Dantes era impossível porque ainda tinha esperança que pudesse confraternizar como sempre soube. Quando essa esperança se desvaneceu, o único obstáculo que o impedia de retaliar era a religião. Acima de tudo, supostamente, ele tinha de saber perdoar. Obrigou-se a acreditar que era um simples teste de Deus e que acabaria tudo bem.
Quase a chegar à sua rua, depara-se com uma visão fora do normal. Um cachorro, já mais ou menos crescido, ergue-se em cima de uma coluna do muro de uma casa. O cachorro, branco, com grandes manchas pretas, olha curiosamente para Jeremias.
Este, retribui o olhar. Ficam a estudar-se durante vários segundos. Jeremias, aproxima-se, e repara que o cachorro hesitou, como se quisesse fugir mas algo o prendesse. Jeremias estendeu-lhe a mão para ele cheirar, ritual que fazia com todos os cães que conhecia.
"És novo aqui." - disse, sorrindo levemente. "Sou o Jeremias."
Fez-lhe uma festa na cabeça e coçou-lhe a orelha. E abalou.
Nessa altura apercebeu-se que se calhar era cobardia, e não zelo. Uma razão (talvez quase forçada) para não tomar acção. Um homem a sério teria enfrentado os problemas de frente em vez de se esconder e chorar por algo tão fútil como aceitação por parte dos outros. Apercebeu-se tarde demais que não precisava de ser aceite de todo. Não por humanos, pelo menos. Quando se tem um mundo inteiro de outros seres com os quais se pode partilhar a compaixão e a amizade.
Desde que havia saido do secundário nunca mais tinha falado com os seus colegas (palavra que passara a usar para designar aqueles com os quais está junto por obrigação). De facto, iria ter sempre mui maior dificuldade em confiar plenamente em alguém. Os anos anteriores tinham-lhe mostrado a realidade sobre o que é um "Homem".
Iria também ter o máximo respeito pela Natureza, pois, na sua cabeça, só aquilo em que os humanos não tocam é que é verdadeiramente puro. Isso faria da Natureza a maior inimiga do Homem. A força imparável. A única coisa que não pode ser controlada para sempre. É ao mesmo tempo a Vida e a Morte. O Homem, de certa maneira, também o é.
Mas enquanto a Natureza mata para causar mais Vida, o Homem mata para causar mais Morte. O Homem era o único animal capaz de odiar outros da sua própria espécie.
Despertando do transe em que o descarrilamente filosófico o tinha levado, Jeremias dá consigo à porta de casa. Entra para o pequeno pátio. A sua cadela vem ter com ele. Ele dá-lhe um beijo na cabeça e coça-lhe a orelha demoradamente.
E entra em casa.
Após lido este post deixo apenas uma pequena frase para se reflectir que uma vez ouvi:
ResponderEliminar"quanto mais conheço os homens, mais gosto dos animais"
É engraçado que diga isso, pois é exactamente por essa filosofia que este personagem se rege.
ResponderEliminarLi e reli este texto. Porquê? Perguntar-me-ão. Porque simplesmente me revi neste jovem Jeremias. Porém a vida foi-me ensinando outras coisas. Refugiei-me na escrita quando novo. Procurei dentro de copos e atrás de cigarros outros sentimentos. Mas nem aqui fui realmente feliz.
ResponderEliminarCuriosamente foi no Homem que reconheci uma vez mais que a amizade não é um palavra vã. Provavelmente eu não necessito de muitos amigos para me bajularem e depois qual pastilha cuspirem fora quando já não sirvo.
Prefiro um apenas mas que eu saiba que posso sempre contar com ele. Os outros, quero lá saber. Percorrerão o caminho da forma que quizerem envoltos em muitas aventuras, mas no final serão mais infelizes do que eu. Porque terão uma mão cheia de nada e a outra de coisa nenhuma...
Percebo o que quer dizer.
ResponderEliminarInfelizmente, o nosso personagem cortou completamente relações com o mundo humano e as suas amizades são apenas com animais. A sua total falta de confiança no homem (com "h" pequeno de propósito) leva-o a fechar-se cada vez mais, não deixando espaço para um possível "redenção humana", por assim dizer (como, pelos vistos, foi o seu caso).
Claro que quanto mais tempo o Jeremias actuar assim, mais fácil será ser alvo das humilhações que tanto o torturaram. O que ele devia fazer é esquer o passado e recomeçar.