5 de junho de 2009

Joel está encostado a uma coluna. Coluna essa que suporta o tejadilho da estação de Roma-Areeiro. Sem desviar os olhos do seu caderno, infere que o comboio se aproxima pelo barulho cuja amplitude parece estar a aumentar exponencialmente. Ainda sem olhar para o comboio, faz um pequeno esforço com a anca para se separar da sua coluna escolhida. De facto, quando Joel está à espera do comboio, a coluna suporta tanto o tejadilho como a ele. Infelizmente para ela, é sempre ela a escolhida. Mas ele sabe que ela não se importa. Movendo-se uns meros metros para a esquerda, de repente pára. Vira-se, ficando em posição paralela à linha do comboio. Agora sim, olha para o lado e vê o transporte a aproximar-se. Joel pergunta-se como é que bestas de tal tamanho conseguem ser movidas tão facilmente? Obviamente não é um pergunta para um informático responder, mas não é esse o modo de vida do filósofo. A busca incessante de conhecimento ......

O pensamento é interrompido pela travagem total do comboio. Como sempre, Joel está directamente em frente a uma porta. Como sempre, faz questão de ser o primeiro a entrar. Como sempre, senta-se no lugar à janela, onde pode pôr o ombro e dormir uma sesta (sesta esta intervalada entre as várias estações até ao seu destino, para ter a certeza que não adormece). Mas Joel só dorme se não tiver nada para fazer. Isso já não acontece há bastante tempo. Pega no seu caderno e começa a escrever.

A viagem até Entrecampos não demora muito, e como são 14 horas e 37 minutos, o comboio não vai muito cheio. Antes pelo contrário. Após a travagem e consequente abertura da maioria das portas, uma senhora e o filho aproximam-se da quadrilha de cadeiras onde está Joel. Sentam-se. Joel fica algo incomodado, considerando que a grande maioria das cadeiras estava vazia, não fazia sentido que a senhora tivesse decidido sentar-se ali. "Suponho que é o direito dela.... Enfim".

O que preocupava mais Joel não era a senhora, mas a criança, visto que ele nunca gostou de crianças. Principalmente as mais irrequietas e mal educadas (como ele via tantas por aí).

Ignorando o que estava à sua volta, e acabada esta reflexão, prosseguiu com a escrita. Não consegue chegar até à segunda linha até reparar que o rapaz parecia sofrer de hiperactividade. Nunca olhou para ele, mas Joel prefere usar outros sentidos para além da vista. As mudanças constantes de lugar (e o chinfrim constante entre as ditas) irritavam Joel quase até ao limite. Nisto, achou estranho que a suposta mãe não dissesse nada.

Finalmente, o rapaz estabiliza. Senta-se à frente de Joel, olhando para ele fixamente.

"O qué que 'tás a escrevê?"
Joel nada diz, nem parece estar ciente da presença do rapaz.
"Olha, tu, qué que 'tás a escrevê?"
Só se ouve o barulho das carruagens a rolar pela linha. De Joel, pelo menos, nenhum som audível foi proferido.
"Olhe, olhe lá, senhor..."
Sem poder acabar a frase, a cabeça de Joel finalmente ergue-se bruscamente, olhos absolutamente fixos e focados no rapaz.
"Letras"
O rapaz fica desnorteado e (felizmente) silencioso por momentos. Ter de repente a atenção máxima daquele homem já não lhe metia tanta graça. E a resposta poderá ter confudido horrivelmente a lógica pouco funcional pela qual o cérebro dele funciona.
"Letras? Só letras?"
"Se fosses esperto, saberias que um conjunto de letras forma uma palavra."
Joel aproveitava-se do facto da progenitora ter auriculares nos ouvidos para se divertir com o miúdo. Este é que não se iria divertir muito. Joel tem maneiras particularmente interessantes de se entreter.
"Para quê?"
Joel suspira. "Já não ensinam nada nos dias de hoje? Um conjunto de palavras é uma frase. Claro que não posso esperar que uma criatura como tu consiga perceber isso."
"É um livro?"
"É."
"Posso ler?"
"Não."
"Porquê? Eu quero ler!" E fez uma cara triste, com um toque de raiva e desespero, numa salada de feições faciais que Joel nunca imaginaria conseguir ver.
Joel pareceu focar-se ainda mais no rapaz. De seguida sorriu pela primeira vez.
"É engraçado como tu pensas que com expressões faciais e gritarias consegues o que queres. O tratamento que a tua mãe te dá é claramente insuficiente, pois dela deves conseguir tudo o que queres, não é? Por isso é que ela ainda nem abriu a boca neste tempo todo. Já nem se importa com o que fazes, visto que ela vai acabar por te deixar fazê-lo na mesma. Isso significa que é uma fraca e que tu és mimado. Isso vai acabar por te fazer fraco também. Posso concluir que não és hiperactivo como estava inicialmente a pensar, és apenas chato. Eu não gosto de crianças no geral, mas gosto muito menos dos meninos mimados. Ou chatos. Ou ambos. As pessoas que eu não gosto não têm direito a ler o que eu escrevo, a não ser que paguem. Logo, se tiveres ai dinheiro, deixo-te ler. E não penses em pedir à tua mãe. Pelo cheiro, consigo perceber que fuma bastante, e pelo ligeiro tremelique na mão tenho quase a certeza que já não tem tabaco, logo vai gastar dinheiro nisso, e não em ti neste momento. Desculpa lá."

Joel respirou fundo e recomeçou a escrever. O rapaz não disse mais nada a viagem inteira, uma lágrima escondida a querer molhar o rosto. Chegado ao destino, Joel pediu licença para sair, mas foi interpelado por uma idosa:

"Você não tem vergonha do que fez ao rapaz!? Olhe só ali o coitadinho! Você é feito de pedra ou quê??"
Joel, olhando de novo para o rapaz, e de seguida olhando para a idosa, apenas sorri.

Saiu do comboio, sentido-se de facto bem. Só sente pena por não lhe acontecer uma destas todos os dias.

3 comentários:

  1. No mundo de hoje somos confrontados com todo o tipo de violência. Este caso da criança aborrecida e chata é uma das formas.

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  2. Ne verdade nem todas as crianças são mal educadas ou mimadas. Há aquelas que não deixam de ser crianças mas portam-se como deve ser. Mas o foco desta hitória tem essencialmente a ver com a mãe, ausente, distante. As mães são as primeiras responsáveis pela educação dos filhos. E estes são aquilo que as mães deixam.
    Para terminar se fosse criança e um tipo como o auroe me aparecesse na frente com esta conversa dava-lhe um pontapé nas canelas. Haveria de se lembrar de mim durante muito tempo.

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  3. Texto bem escrito e muito criativo... bastante acima da média que vemos por aí. Parabéns!

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