19 de junho de 2009

A figura já algo conhecida da estação de Roma-Areeiro está, mais uma vez (e como sempre), enconstada à sua coluna de suporte favorita. Os que já o conhecem tentam não ficar na mesma carruagem que ele. O espectáculo não costuma ser bonito se por acaso apanha mais uma presa para as suas maquiavélicas explosões de crítica e desmoralização.

O rapaz (não deve ter mais de 20 anos), magro, alto, cabelo longo apanhado num rabo de cavalo, castanho escuro, olhos pretos perfuradores e observadores. Usa sempre o mesmo casaco, faça um frio enregelador ou um calor diabólico. Curiosamente, quem passa mais perto dele vê claramente a forma de um crucifixo por debaixo da t-shirt. De caderno na mão, sempre a escrever, esporadicamente lança olhares através da estação, resumindo a escrita pouco depois.

Num desses visionamentos aleatórios da estação, repara numa rapariga perto dele. Estuda-a rigorosamente enquanto o comboio se aproxima:

"Estatura acima da média para uma jovem... Deve ter uns 18 anos. Forma corporal atlética, atraente, pele bronzeada. Cabelo castanho encaracolado com madeixas louras. Mini saia e decote provocativo. Não admira, considerando o calor... Mala de computador portátil. Universitária portanto. Parece ser caloira, visto que o peso do computador ainda lhe parece causar transtorno. Logo, a idade parece estar confirmada. Tem anel do dedo anelar direito, logo tem namorado, e parece ser coisa séria."

Hesitou nos pensamentos por um momento. O comboio estava agora a travar. Sorriu interiormente.

"Então Joel? Estás a ser ingénuo? Não há tal coisa como namoro sério." Esboçou um sorriso físico que não conseguiu evitar. "Ah sim, isto hoje vai ser interessante."

Contente com a sua nova presa, decidiu impulsionar-se rapidamente para a frente de rapariga de modo a entrar no comboio em primeiro. Todavia, não se sentou no seu lugar normal, mas sim num dos únicos lugares onde o passageiro pode apanhar sol durante a viagem. Ligeiramente chateada com o lugar pretendido "roubado", a rapariga decidiu sentar-se, enfim, à frente de Joel. A estratégia dele havia resultado, sabendo que muito provavelmente ela se iria sentar num lugar com sol, considerando a pele bronzeada.

O comboio arranca. Joel estava certo de que eventualmente conseguiria a atenção dela de alguma maneira. Reparou que estava a olhar fixamente para o caderno escravinhado dele, mas não disse nada. De facto, agora de mais perto, reparou que a rapariga era de uma beleza singular, quase angelical. Facto estranho para alguém que estava vestido da maneira que estava.

Fixando-a com os seus olhos (que, apesar de esconderem uma personalidade verdadeiramente macabra, tinham algo de invulgarmente belo, como pérolas negras), começou:

"Conheço-te de algum lado... Não és daquela telenovela?"

A rapariga, estranhando, respondeu: "Não.... mas qual novela?"

"Aquela que é com jovens a divertir-se... Onde eles se apaixonam e zangam-se mais depressa do que eu consigo suportar ver..."

"Os Morangos com Açúcar?" -lançou um riso mostrando uns dentes brancos redondos- "Claro que não! Era preciso ter muita sorte e talento para conseguir entrar no elenco!"

"Ah..." -Joel hesitou uns momentos, pensativo, e foi a sua vez de se rir numa gargalhada bastante alta e prolongada. Quando se acalmou continuou -"Então identificas-te com aquela sociedade que essa novela mostra?" -e gesticulou aspas com os dedos ao dizer "sociedade".

"Sim, diria que sim. Até diria que mostra mais ou menos bem os dias de hoje em que os jovens vivem. Mas porque é que te riste?"

"Hmmpf, obviamente trocar de namorado a cada semana, não estudar, meterem-se em todo o tipo de problemas facilmente evitados e nos tempos livres dar cabo da vida aos progenitores parece ser uma sociedade agradável."

Joel focou-se na rapariga e por momentos nada disse, fazendo-a elevar uma sobracelha curiosa. Por fim, um sorriso triste na cara, resumiu:

"Sim, talvez mostre o muito que a nossa sociedade sofre nos dias de hoje. Repudio os jovens de hoje por exactamente essa razão. As actividades que vocês hoje fazem vão contra muito do que eu defendo. Não há um único argumento que possa ser usado para defender a escumalha que virão a ser os próximos adultos. Uma geração inteira perdida. Um conjunto de valores absolutamente ignorados que vai fazer Portugal ir ainda mais para o fundo. Todos os que pensam que comportar-se de certas e determinadas maneiras é.... ah, como é que dizem?.... "fixe", é isso!, então não deviam ter lugar numa sociedade. Deviam ser banidos, ou reabilitados, no máximo." - interrompeu-se por breves momentos, reflectindo. E quando a rapariga, até agora preplexa com este discurso pouco esperado (mas claramente previamente pensado) decidiu tentar dizer alguma coisa.....

"Não" - rematou Joel, antes que ela tivesse possibilidade, com olhar carregado, uma face de extrema raiva saindo de todos os seus poros para o mundo exterior, a derradeira cara do repúdio. "Eles não são de confiança. Nunca! Nem tu, nem nenhum outro. Este país precisa de uma filtragem dos da tua laia."

Aproximava-se a paragem onde Joel iria sair. Num acto de coragem, a rapariga finalmente responde, quando vê que o seu estranhíssimo interlocutor se preparava para sair, ao arrumar os cadernos:

"Mas tu nem 20 anos deves ter! Como podes dizer esse tipo de coisas duma sociedade onde tu próprio estás inserido!?"

Uma pergunta astuta, ao qual Joel sorriu. Sem sequer pensar respondeu:

"Eu não sou um de vocês."

Pondo-se em pé, saiu do comboio.

3 comentários:

  1. Finalmente alguém com coragem para dizer o que pensa! Sim senhor, belíssimo naco de prosa. Mordaz q.b., incisivo, coerente e muito, muito bem escrito.
    Temos bacalhau...
    ... e não é da Noruega!

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  2. Gostei da excelente escrita. O texto revela ainda boa formação pessoal e bons prenúncios de liderança.
    No entanto, ao pretender apelar à responsabilização dos jovens contemporâneos, no caso através da denúncia e crítica, o jovem "magro, alto, cabelo longo apanhado num rabo de cavalo, castanho escuro, olhos pretos perfuradores e observadores" perdeu-se um pouco na intolerância das palavras.
    Deixo, assim, uma mensagem:

    i)a sociedade precisa de atitudes como a do jovem traduzidas no caso através da crítica e da abordagem directa ;ii)mas o que igualmente nos dá uma forte dose de autoridade natural para participar em mudanças, é a auto-exigência de valores tais como a tolerância e o bom-senso, pois não basta invocá-lo como fez o jovem autor quando refere "quem passa mais perto dele vê claramente a forma de um crucifixo por debaixo da t-shirt ".
    É necessário ir por aí, tanto quanto possível, uma vez que hoje já ninguém se deixa crucificar, não é?

    Vou agora uns dias de férias, mas hei-de voltar pois gostei imenso dos textos aqui publicados.

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  3. A minha idéia com esta personagem era fazê-lo seguir certos valores morais, sociais e religiosos, mas ele, por vezes, exalta-se um bocadinho mais e daí resulta estas "explosões" de criticismo. É óbvio que nestas alturas ele perde qualquer resto de bom senso que tivesse.

    Ás vezes ele simplesmente gosta de se meter com as pessoas se por acaso lhe apetecer. Foi o caso neste texto.

    Respondendo ao primeiro comentário, não sei quanto ao escrever bem, mas eu nunca tive problemas em dizer o que me ia na cabeça. Aliás, foi mesmo essa a razão que comecei este blog.

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